Smart City, uma moda que veio para ficar.

Smart City, uma moda que veio para ficar.

31 out 2017
  • estratégia e economia
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  • Cultura
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Miguel de Castro Neto vem falar sobre Cidades Inteligentes: ideias para o Futuro, nas conversas na Aldeia Global. Coordenador da Pós-Graduação em Smart Cities na NOVA IMS sendo também responsável pela iniciativa 'NOVA Cidade', é a pessoa indicada para nos explicar, ao pormenor, o que é isto de uma Cidade Inteligente. Sendo também Presidente do Conselho Nacional de Engenharia Agronómica da Ordem dos Engenheiros, coordenador do Grupo Cidades e Ordenamento do Território da Plataforma para o Crescimento Sustentável e Presidente do Conselho de Curadores do Festival Terras Sem Sombra, possui uma vasta experiencia e conhecimento do território, das suas dinâmicas e idiossincrasias. 

Entrevista - Carla Rocha

Fotografia - Carlos Santos

 

O que é uma Smart city? Será que isto começa a comportar-se como uma moda?

Falar de smart cities de facto é uma moda. É uma moda em movimento. Hoje começamos a ver alguns autarcas e especialistas a falarem em 'cidades felizes' ('happy cities'), porque as cidades não são inteligentes nem são estúpidas, são apenas cidades, e as pessoas é que são mais ou menos inteligentes. O objetivo final de uma cidade inteligente ou feliz, é nós conseguirmos garantir que, quando governamos a cidade, temos níveis de qualidade de serviços adequados à qualidade de vida que pretendemos que os cidadãos que vivem nessas cidades usufruam. Ou seja, quando falamos em cidades inteligentes pretendemos garantir que há cidades em que adotamos práticas sustentáveis em termos económicos, sociais e ambientais e asseguramos a qualidade de vida de quem vive, trabalha ou visita as cidades.

O fim é sempre o cidadão?

Sim. Porque é que nos últimos tempos tem havido tanto este foco em inteligência urbana, em cidades inteligentes, e porque é que nós, NOVA IMS, estamos também interessados neste tema? Porque a evolução da tecnologia não ocorre apenas nas empresas, mas sim em todos os domínios da nossa sociedade. Nós conseguimos hoje recolher dados que nos permitem perceber onde é que as pessoas estão, o que é que as pessoas gostam ou não gostam. Existe hoje uma capacidade analítica de recolher dados que nos permite olhar para o planeamento e para a gestão das cidades de uma forma completamente distinta do que era no passado. Hoje nós podemos tomar decisões em tempo real sobre a gestão da cidade, com os dados dos sensores e com os dados dos cidadãos. Hoje fala-se muito na cidade como plataforma, porque é exatamente esta plataforma que tem que integrar todos os dados, para podermos ser mais inteligentes na forma como governamos a cidade e na forma como o cidadão vive na cidade.

E onde é que começa e acaba a linha que separa aquilo que a informação que cada um de nós partilha e não se importa de partilhar, daquilo que já pode ser considerada uma invasão na vida pessoal de cada um?

Hoje, esse é o principal desafio que nós encontramos. Há um primeiro desafio da construção desta inteligência urbana, que é fazer a transformação digital das organizações, para que estas sejam mais eficientes e consigam desmaterializar processos. Por exemplo, a autarquia deixar de usar papel, ser mais eficiente na sua tomada de decisão, conseguir responder a uma reclamação ou a um pedido de um munícipe em tempo real. A segunda camada é quando nós tentamos também tirar partido da tecnologia no interface com o cidadão, ou seja, o cidadão consegue interagir com o município ou com a cidade, utilizando a tecnologia. Por exemplo, utilizando a internet, em que tendo uma aplicação no telemóvel, no momento em que o cidadão vê um buraco na rua e reporta esse buraco. A camada seguinte é quando nós conseguimos começar a ter dados cruzados e cruzar esses dados para mudar a forma como nós gerimos a cidade. Um exemplo muito simples, se nós pensarmos na iluminação pública, tipicamente o que ouvimos dizer é que um município mudou a sua iluminação para LED e é muito inteligente porque é tecnologia. Mas a inteligência não é isso. A inteligência é se a iluminação pública do meu concelho foi planeada e é gerida para aumentar e diminuir a intensidade consoante haja mais ou menos nuvens, caso seja de noite ou de dia. Mas isso já existe e até é uma coisa simples de se fazer. Ou, por exemplo, eu saber que há um cruzamento em que tenho dados em tempo real do que é o tráfego de trânsito ou de pessoas num certo espaço e a intensidade luminosa reage a isso, consoante o que lá se passa. Também posso saber os locais onde há mais incidências de crimes e aí tenho mais iluminação. Ou saber, através da agenda cultural, que vai haver um evento em determinada Praça, e no dia do evento e na hora do evento, a iluminação é diferente, porque naquele momento há um evento. A inteligência urbana é isto: quando consigo cruzar estes dados todos. O que acontece é que muitos destes dados hoje, já não estão na posse, ou são geridos pela administração pública. Pelo contrário, muitos destes dados já estão na posse de privados. Há o exemplo do Google maps, mas há mais. Há duas semanas a NOS lançou o Portal do Turismo e o que eles fizeram foi: com os metadados do roaming eles conseguem dizer quem é que está nas várias cidades do país, qual a sua nacionalidade, se tem um elevado poder de compra ou não (por causa do modelo do telemóvel que ele consegue identificar). Conseguem ainda dizer, por exemplo, 'Em Sintra, os turistas destas nacionalidades todas, chegam lá por volta das 10h/11h da manhã, ficam lá até às 16h/17h da tarde, e vão se todos embora outra vez'. Não é só a questão de saber que está lá um turista, é possível hoje saber que aquele turista específico aterrou em Lisboa hoje às 10h00, dormiu num Hotel X e visitou Sintra no dia seguinte. Obviamente que eu estou a dizer que sabemos que é o Turista x, mas o que nos fazemos é tornar os dados anónimos e agrupá-los e a massa de dados tem valor por si. Nós não precisamos de saber, nem sabemos, até porque isso não é permitido pela legislação em vigor, quem é exatamente a pessoa em questão. O que nós sabemos é que há um grupo, há ali uma massa que se desloca de um sítio para o outro. Essa informação anonimizada tem um valor brutal para esta nova construção da inteligência urbana. Dito isto, há hoje uma grande preocupação sobre o que é que se pode fazer com estes dados. São estes na inteligência urbana, na investigação médica, na área da saúde. Por isso é que hoje já existe aprovado um Regulamento Europeu de Proteção de Dados, que vai entrar em vigor em Maio de 2018, que antevê estes problemas e propõe uma série de regras para isto poder funcionar, protegendo sempre a privacidade do cidadão.

Eu ouço-o a falar e parece-me tudo muito razoável e até tão óbvio o que me diz, mas o que me parece é que as nossas cidades ainda estão um bocadinho longe deste conceito…

É verdade. Nós temos 308 municípios, entre cidades e vilas, e obviamente temos cidades com atitudes e graus de maturidade muito diferentes, relativamente à inteligência urbana. Mas, também temos hoje Cidades que já perceberam, não só, o que significa uma cidade ser inteligente, mas também já compreenderam que têm de alguma forma que adotar uma estratégia que permita construir esta realidade. Eu não posso deixar de dar o exemplo de Oeiras, porque Oeiras não tem vindo a ser um concelho em que se fala de smart cities apenas porque se utiliza iluminação LED. Oeiras fez um trabalho sério, construiu conhecimento e fez uma avaliação do município, sobre quais eram as suas caraterísticas, qual era o seu potencial, e qual era o caminho que devia ter sido seguido, e já desenvolveu várias iniciativas neste sentido. É curioso porque essas iniciativas, no caso concreto de Oeiras, têm endereçado vários desafios. Não apenas têm apostado na adoção da tecnologia para melhorar a qualidade de vida e os serviços prestados ao cidadão, como com a plataforma OeirasEU, e as várias ferramentas que têm vindo a construir; mas têm, também, feito algo muito interessante que é a capacitação dos recursos humanos. Os técnicos da autarquia  têm vindo a fazer formação precisamente nesta área. Estamos a falar de novas tecnologias, novos modelos de análise, matérias que não se aprendiam há 10 anos atrás nas Universidades, nesta área.

Qual o papel do cidadão no seu município?

É um cidadão participativo. A democracia está em mutação. Na realidade o governo da cidade não é só decidido de 4 em 4 anos quando há eleições, mas ao longo de todo o mandato há hoje instrumentos que permitem que exista quase uma democracia direta, em que nós sabemos, em tempo real, o que é que o cidadão quer, e podemos de facto ir alterando as nossas decisões, quer em termos de planeamento, quer em termos de gestão, de uma forma muito mais próxima à vontade do cidadão.

Há menos desculpas mas também há outros desafios. Sabemos que por norma quem participa mais são os extremos, ou os que são mais radicais, positiva e negativamente. Por isso, corremos o risco de haver uma maioria silenciosa que não é de facto auscultada e há a sensação de que estamos a responder à sociedade e temos que acautelar essa preocupação. Há aqui outro fenómeno muito curioso que temos assistido, é que nós ao longo dos anos verificamos quase uma desumanização das cidades. Na maior parte dos casos as pessoas não conhecem quem vive no seu bairro, no seu prédio, e corremos o risco que a tecnologia venha agudizar este fenómeno.

«Sabemos que por norma quem participa mais são os extremos, ou os que são mais radicais, positiva e negativamente. Por isso, corremos o risco de haver uma maioria silenciosa que não é de facto auscultada e há a sensação de que estamos a responder à sociedade e temos que acautelar essa preocupação. Há aqui outro fenómeno muito curioso que temos assistido, é que nós ao longo dos anos verificamos quase uma desumanização das cidades. Na maior parte dos casos as pessoas não conhecem quem vive no seu bairro, no seu prédio, e corremos o risco que a tecnologia venha agudizar este fenómeno»

 

 Cada vez estamos mais agarrados aos equipamentos, cada vez fazemos mais tudo pelo computador, e cada vez estamos menos através de contacto pessoal. O que é curioso, é que começam a aparecer cada vez mais aplicações que vêm promover a partilha e a promoção do espírito comunitário. Esta ideia do 'Fix my street', o que faz é que o Bairro participe mais, e hoje há soluções de partilha de serviços e equipamentos a funcionar a nível de bairro. Podem criar-se redes comunitárias e redes de confiança que usam a tecnologia e que trazem outra vez para cima da mesa as comunidades. Hoje em dia as pessoas formam redes, como o whatsApp, em torno de espaços geográficos, que era uma coisa que tínhamos vindo a perder ao longo do tempo.

E quem é que define que aquela cidade é uma Smart City? Todas elas querem ser.

É verdade. Há desde uma ISO para as comunidades inteligentes e sustentáveis, até trabalhos feitos por várias organizações que dizem as variáveis que medem a inteligência urbana, há indicadores para todo o gosto. Mas eu considero que há um grande desafio em medir se uma cidade é inteligente porque as cidades são todas diferentes, e o que se pode considerar 'inteligente' para uma cidade, pode não ser para outra. Eu dou exemplo concreto da ISO que internacionalmente avalia a questão das comunidades e cidades inteligentes. Uma das métricas que eles lá têm é o número de km´s de estrada, a densidade de vias rodoviárias. Isto depende muito, porque eu até posso dizer que a minha cidade é muito inteligente porque não tem lá carros dentro, posso querer que ela tenha ciclovias para se poder andar de bicicleta, ou que tenha ruas apenas pedonais. Ou seja, isto de medirmos é muito complicado. Agora nós também sabemos que há determinadas caraterísticas que têm que estar presentes para isto acontecer. A tal ideia da plataforma, a tal ideia da partilha de dados, a ideia do envolvimento do cidadão na governação da cidade. Há um conjunto de coisas que tem que acontecer. Quanto à variável sustentabilidade – como é que são os comportamentos das organizações e dos cidadãos? Se há separação de lixo ou não há, qual é o número de automóveis de uso privado. Portanto, tudo isto são indicadores que nos permitem fazer essa avaliação. Mas eu confesso que ainda não encontrei um indicador que me satisfaça e que possa dizer que é possível hierarquizar as cidades todas, e se são inteligentes ou não. Aliás, é muito perigoso entrar numa lógica de rankings. Possível é identificar boas práticas e bons projetos de inteligência urbana.

No fundo, a smart city também ajuda a quem governa o território a ser mais eficiente em produzir aquilo que o cidadão precisa. Mas aquilo que o cidadão precisa nem sempre é o mais importante para aquele território.

É preciso não confundir as duas coisas. Ou seja, há aqui uma dimensão política da governação da cidade, e portanto há alguém que tem que definir quais os objetivos de longo prazo para a cidade e obviamente tem que também depois ouvir e envolver o cidadão neste processo. Eu acho é que nem todas as decisões são 100% de quem governa, nem todas as decisões são 100% do cidadão. A política é isso mesmo, é ponderar os vários interesses em jogo e decidir qual é o melhor caminho a seguir. Isto nunca foi tão real como hoje, pois há uma capacidade de monitorização, e uma transparência como nunca houve. Qualquer decisão que é tomada, hoje fica exposta a reações de todos os cidadãos, das mais diversas formas. Portanto, o escrutínio do cidadão é hoje mais forte do que era antigamente.

Só uma curiosidade minha: as cidades que são mais próximas da Área Metropolitana de Lisboa ou do Porto, o que estão mais no Litoral estão mais atentas a esta mudança? Imagino que no interior seja mais difícil este conceito ser adotado.

Para mim esse é um dos pontos mais fascinantes destas questões da inteligência urbana - não depende da localização. Esta é a minha visão, ou seja, inteligência urbana não depende de nós termos dinheiro, ou estarmos localizados no litoral, depende sim da nossa capacidade de conseguir encontrar soluções e novas formas de gerir a cidade. Obviamente que se pensarmos em Áreas Metropolitanas, como é Lisboa e como é o Porto, há muitos mais problemas, e muito mais oportunidades, mas no interior nós podemos desenvolver novos produtos e serviços, tão inovadores ou mais do que aqueles que acontecem no litoral. Dou outro exemplo de uma cidade que para mim é de facto líder nacional na construção da inteligência urbana que é Viseu. Viseu está no interior e todos os indicadores de Viseu, de crescimento, demografia, estão a ter um movimento contrário àquilo que consideramos tendência no interior, como a desertificação, do definhamento económico. Tem tido um papel muito importante do ponto de vista da inteligência urbana que é tentar que os jovens, que as start-ups, que os empreendedores construam e testem em Viseu soluções que contribuam para a construção das cidades inteligentes. Há o caso de um software de apoio aos orçamentos participativos. Havia uma empresa de Viseu que desenvolvia um software e que estava com alguma dificuldade em conseguir comercializá-lo, então o município ofereceu-se para testar o software na cidade com a contrapartida de passar a ser o cartão de visita da empresa, no sentido de venderem o produto a outras cidades. E foi o que aconteceu.

Por exemplo, também Bragança, tem todos os anos um evento chamado 'Smart-travel', que reúne especialistas do mundo inteiro a debater a inteligência no contexto do Turismo.

Quando se deita e fecha os olhos qual é o desafio que lhe vem à cabeça que gostava de ver resolvido?

O que eu gostava mesmo era que todas as cidades, e isto depois podia alargar-se à administração pública toda e às empresas privadas, conseguissem considerar que os dados que estão encerrados nestas organizações teriam muito mais valor e tinham um papel muito mais importante para a sociedade se fossem disponibilizados de forma aberta. O conceito de dados abertos, se fosse adotado de forma transversal, nós conseguiríamos que as empresas, os empreendedores, as start-ups conseguissem pensar e criar produtos e serviços que nós nem imaginamos que fossem possíveis de ser construídos.

O que significou para si ser 'Personalidade do Ano das Smart Cities'?

Teve um significado especial porque foi o reconhecimento do trabalho que tenho vindo a desenvolver, e é também especialmente importante para mim porque esse prémio é atribuído por um Conselho (Conselho Estratégico da Green Business Week) onde têm assento representantes de vários setores da nossa sociedade: desde as empresas, às autarquias, às associações, a área não governamental. Por isso mesmo, é algo de que me orgulho muito.