Arlete Alves da Silva - Pensar em Grande

Arlete Alves da Silva - Pensar em Grande

03 nov 2017
  • Cultura
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Arlete não gosta do seu nome. É um nome francês. Forte. Diferente. Distinto e se pensarmos bem, encaixa-lhe na perfeição. Arlete não gosta do holofote mas a vida a que se propôs viver não lhe permite viver na sombra. E não lhe permitindo, ela galga a luz com saber. Tem uma gargalhada forte e não se coíbe de falar do amor que a uniu desde cedo àquele que seria o seu único amor – Manuel de Brito. Juntaram os seus destinos tinha ela 19 anos e ele 35. Tiveram dois filhos e uma vida inteira dedicada à arte. Ela educou o olhar. Remeteu-se mais para os bastidores, a organização e a gestão, coisas em que assume que é boa. Passou por um Portugal de clausura e enfrentou-o como pôde. Foi a primeira rapariga a entrar de calças na Faculdade de Letras. Outras seguiram-na porque quem é diferente instiga sempre a ser copiada. Há onze anos a Câmara Municipal de Oeiras assinava um protocolo por onze anos com a família Manuel de Brito de forma a que esta mostrasse a sua coleção privada. Manuel de Brito já tinha falecido mas Arlete e os filhos Rui e Inês e o enteado Manuel, honraram o protocolo e a sua vontade. Onze anos passaram num ápice. Assim passa o tempo. É tudo a correr. Tudo demasiado rápido. Arlete sabe disso. O protocolo chegou ao fim e ela está de saída. Quer viver mais os netos e a vida que lhe resta. Da morte perdeu o medo aquando da morte do seu pai. E para quem vive sem medos tudo é possível. Resta-nos perguntar: e agora?

 

Entrevista – Carla Rocha

Fotografia – Carlos Santos

 

Voltemos ao início destes 11 anos de protocolo da autarquia com a família Manuel de Brito. Como foi dar o pontapé de saída? Já tinha tudo arrumado na cabeça.

Sim, já. Sou metódica, analítica e até pode-se dizer que sou fria na forma como me organizo.

Quando fez esse plano teve em conta o seu pensamento ou aquilo que o seu marido poderia ter feito se fosse vivo?

Se ele tivesse organizado as exposições não tenho a mínima dúvida que o teria feito de uma maneira diferente daquela que eu fiz. Eu sou estruturada, ele era menos, era um romântico, vivia mais na desordem. Ele era mais ao Deus dará, portanto não seriam as exposições iguais às que pensei e organizei.

Ao organizar as exposições para o CAMB | Centro de Arte Manuel de Brito sentiu que tinha de ser acima de tudo a Arlete, sem pensar no que o Manuel diria ou faria?

Temos de ser sempre nós. Isso é fundamental em tudo o que fazemos. Até porque nós eramos tão diferentes! Sempre houve esse respeito pela nossa forma de ser que não fazia sentido algum eu começar a pensar como ele pensava. Nós eramos realmente o oposto.

Essas diferenças de que fala não criavam atritos entre vocês?

Não, acabávamos por nos complementar. Ele era um excelente relações públicas, muito charmoso, atento aos pormenores e eu estava por trás, na organização, no método, nas contas. Sabíamos naquilo que cada um de nós era melhor. Ele gostava de aparecer e eu detestava.

Diz que não gosta de aparecer muito, mas por força das circunstâncias tem de deixar de lado essa timidez e aparecer. É difícil lançar-se para a multidão?

É difícil, mas já me custa menos. Nós tínhamos uma vida social intensa e tive de me ir adaptando.

Foi difícil ocupar o seu lugar, o seu espaço, ao lado do Manuel de Brito?

Não. Ele dizia uma coisa engraçada: dizia que eu era muito orgulhosa porque todos o admiravam menos eu. (risos) Nós eramos muito sinceros e sabíamos quem era o outro. Eu reconhecia-lhe as qualidades mas também os defeitos e vice-versa. Como tal, respeitando quem é o outro torna-se fácil encontrarmos o nosso lugar.

Estamos perante aquela ideia de que os opostos se atraem.

Penso muitas vezes que quando o conheci eu tinha 16 anos e ele tinha 32. E mal nos conhecemos tivemos uma forte empatia. Foi imediata. Conheci-o em casa dos meus avós, em Figueiró dos Vinhos, lembro-me que estava muito calor e nós viemos para uma sombra mesmo em frente a casa, ou seja, era um lugar acessível para quem passava e muitas pessoas disseram que era o meu namorado. Houve uma atração imediata.

Começaram logo a namorar?

Não. Só três anos mais tarde.

Como foi desafiar as normas sociais da altura?

Foi difícil, mas a verdade é que não havia muito que pudéssemos fazer. Gostávamos muito um do outro. Sentíamos que era uma inevitabilidade.

Nunca hesitou?

Nunca.

Tinha alguma ligação com a Arte?

Tinha um tio avô que era amigo do José Malhoa, de quem tinha algumas pinturas, desenhos e um excelente retrato que fazia as delicias das crianças porque os olhos seguiam-nos para todo o lado. Mas era uma ligação, ainda assim, frágil.

Para se estar neste mundo como é que se faz, educa-se o olhar?

Sim. Educa-se completamente. Tem de se ver muitas exposições. Estudar muito. Ver, ver e ver. Eu e o meu marido corríamos as exposições todas. Tem de se calcorrear este mundo e o outro. E eu adoro pintura antiga. Sinto que estou sempre a aprender com a pintura antiga. E muito do que se faz hoje em dia deixa-me indiferente, sinto que saio a mesma pessoa que entrou na exposição. E não há nada pior do que isso. Nada. Eu tenho de sentir uma ligação a uma peça de arte, pode ser pintura, escultura, não importa… mas a ligação tem de existir.

Um quadro nunca está verdadeiramente visto?

Nunca. Aliás, os melhores quadros estão sempre a surpreender-nos. Sempre. Tenho quadros em casa que às tantas já são como o gato, ou seja, é algo tão do quotidiano e, no entanto, de repente paro, olho e penso 'mas como é que eu não vi isto?'.

A arte tem de interpelar, tem de mexer?

Obrigatoriamente. Para mim, a arte tem de mexer comigo. Às vezes saio arrasada de uma exposição porque aquilo mexeu de tal modo comigo que me deixou exaurida.

Hoje em dia há muita especulação no que à arte diz respeito?

Há, muita mesmo. A maior parte da arte é para dar nas vistas. O artista de hoje em dia, na sua maioria, quer dar nas vistas, o que é uma coisa que eu não valorizo. Na galeria sempre tivemos uma postura de acompanhar o artista. Sempre o fizemos e fazemos hoje com os mais jovens. Ver o percurso, ver como é que ele está a resolver os problemas, ver como é que ele está a evoluir…

Por exemplo, o Francisco Vidal, que o descobri através do CAMB?

Ele estudou desenho aqui nesta sala. Ele já não trabalha connosco. Foi para Angola.

Sim, mas é nesse sentido que questiono, vocês estão presentes na via do artista como, por exemplo, fizeram com a Paula Rego?

Tentamos estar. Ainda há pouco tempo fui a Londres para estar com a Paula Rego e estivemos a falar cerca de cinco horas. Foi muito bom para as duas porque somos amigas há mutos anos. Gostamos de acompanhar o artista. O meu marido já era assim e o meu filho também é e eu comungo de uma postura diferente a nível das artes. Em bom tempo comprámos a nossa casa, o edifício da galeria, os armazéns, bons quadros e estamos bem financeiramente de forma que podemos fazer aquilo em que acreditamos sem aquela avidez de ganhar dinheiro. Isso liberta-nos. Isso foca-nos no que é fundamental.

Estão sempre a comprar obras?

Sempre. A nossa coleção vai até 2017.

O seu filho acaba por completar a obra deixada pelo seu marido?

Ele e eu. Somos uma equipa.

E uma equipa constituída por uma mãe e filho funciona bem?

Funciona. Ao início teve de haver uns acertos - ele queria ficar com a galeria e eu com o CAMB e achei que seria muito pesado ele, tão novo, ficar com a galeria. E se eu montei uma estrutura tão rigorosa, sobretudo ao nível de contas e gestão, enquanto eu tiver capacidade mental para fazer este trabalho, acredito que ninguém o fará melhor do que eu.

Qual a importância de um município procurar parcerias de forma a disponibilizar aos munícipes o encontro com a Arte como acontece no CAMB?

É fundamental e é um trabalho muito importante. Nota-se em Oeiras uma sede de contacto com a arte. Somos visitados por escolas, por grupos de terceira idade… temos um público muito fidelizado e não é só daqui, do concelho, mas de muitos outros sítios inclusive estrangeiros. Sabe, este é um espaço muito bonito, com um jardim, uma cafetaria que convida a ficar. É de fácil acesso, chega-se cá de comboio, elétrico, autocarro. Isto é uma joia em qualquer parte do mundo. E o trabalho que aqui foi feito foi muito sério. Foi um trabalho com cabeça, tronco e membros. E as pessoas reconheceram isso.

Como foram estes onze anos?

Olhe, eu, a Paula e a Susana estamos a fazer o livro dos 11 anos e estou admirada com a quantidade de coisas que foram feitas. Sei o que se fez mas depois, parar e olhar ao pormenor, tem-se a perceção que foi ainda mais e mais.

Em que se traduz estes 11 anos?

Em 41 exposições, que englobaram mais de 2000 obras de 159 artistas portugueses e 43 estrangeiros.

É importante saber quem é o artista por detrás da obra ou a obra deve valer por si só?

Eu gosto de saber quem é o artista e por isso dou elementos sobre ele. Tenho um cuidado imenso na pesquisa da obra do artista e em permitir que quem assim o deseje saiba um pouco mais de quem está por detrás de determinada pintura. Há muita coisa na vida de um artista que depois se reflete na sua obra.

O contrato com a Câmara foi por onze anos que chegam agora ao fim. Mostrou tudo o que tinha para mostrar ou haveria mais quadros para serem vistos?

Há muitos quadros que ficaram por mostrar.

Quantos existem na coleção?

Nem sei… são muitos (risos)

Ainda vai haver tempo para mais uma exposição?

Vai. Comprometi-me em fazer mais uma para dar tempo de se definir o que vai ser o CAMB daqui para a frente.

O que pode dizer dessa exposição que fecha este ciclo?

Chamar-se-á 'Pensar em Grande' e vou trazer os formatos enormíssimos que nunca trouxemos. Vai ser uma exposição com grande impacto.

É complexo organizar uma exposição?

É, mas eu gosto. Levo cerca de meio ano a planear e organizar uma exposição. Os quadros têm de casar uns com os outros. Há alguns que já os trouxe uma série de vezes e que os levei de volta porque não 'jogavam' com o todo. Penduro nas paredes e mudo. Volto a mudar. Não é simples.

O que gostava que acontecesse daqui para a frente com este espaço e com a relação da família Manuel de Brito com a Câmara?

Desde sempre houve uma boa relação entre o presidente Isaltino e o meu marido. O presidente andou atrás do Manuel para este projeto durante vinte anos. Já não serei eu na sua continuação. Este será, daqui para a frente, um projeto diferente mas sim o meu filho que está bem preparado e fará algo diferente e bem.

Custa-lhe deixar este projeto?

Custa mas hei de cá vir e não vou deixar de dar a minha opinião e de ajudar em tudo o que for preciso. Vou andar por cá. É um sítio onde aprendi muito. Está gravado em mim.